sábado, 4 de dezembro de 2010

Antropofagias

Texto 6

Não se esqueçam de uma energia bruta e de uma certa/
maneira delicada de colocá-la no «espaço»/
ponham-na a andar a correr a saber/
sobre linhas curvas e linhas rectas «fulminantes»/
ponham-na sobre patins com o stique e a bola como/
«ponto de referência» ou como «pretexto espaço-tempo»/
para aplicação da «dança»/
experimentem uma ou duas vezes ou três reter determinada/
«imagem» e metam-na «para dentro» assim imóvel/
e fiquem parados «aí» com a imagem parada talvez brilhando/
é qualquer coisa como uma sagrada suspensão/
e abrindo os olhos então o jogo retoma a imagem/
que entretanto ficou incrustada no escuro a brilhar sempre/
e dela «parece» que o movimento parte de novo/
é uma «linguagem» e energia e delicadeza atravessam o ar/
espectáculo do «verbo primeiro e último» apanhem a figura «absoluta»/
do pé esquerdo o patim refulge a mão direita «prolonga-se»/
vamos achar bem que o stique seja a «respiração»/
extrema e extensa/
a bola põe-se a «caligrafar» todo um sistema de planos/
intensos leves/
«metáfora» decerto minuto a minuto destruída pela pergunta/
«que jogo é este para o entendimento dos olhos?»/
a resposta «alegria» tudo esgota/
mas só um sentimento de urgência corporal dá ao jogo/
uma «necessária dimensão»/
«o jogo respira?» perguntam  e diz-se «que respira»/
«então deixem-no lá viver» como se se tratasse de/
«uma criatura»/
podemos confundir «isto» com «acertar»?/
o jogo apenas acerta consigo mesmo e este acerto é o próprio/
«jogo»/
nele ressaltam só qualidades de acção força delicadeza/
envolvimento emsi mesmo/
e o prazer de maquinar o universo numa restrita/
organização de linhas vividas em «imanência»/
de imagem em imagem se transfere o corpo/
sempre à beira de «ser» e parando e continuando/
e ainda «apagando e recomeçando» como se continuamente/
bebesse de si e tivesse o ar pequeno para demonstrar/
a grandeza de si a si mesmo/
«referido a quê senão ao absurdo de um espelho?»/
«a enviar-se» cerradamente entre os seus limites/
zona frequentada pela «ausência viva»/
destreza porque sim forma porque sim aplicação porque sim/
de tudo em tudo/
de nada em nada pelo gozo «básico» de «estar a ser» 

Herberto Helder, Antropofagias

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